Originalidade?

Minha história se fez e se refaz com resquícios de tudo que encontra minhas circunstâncias. O que se apresenta para minha representação pode (ou não), em maior ou menor relevância e intensidade, ser incorporado à forma com que entendo o mundo.
As tintas com as quais pinto as telas da minha existência são variadas. Algumas cores já foram utilizadas por muitos outros artistas e integram minhas obras por serem ainda vivas, intensas; outras matizes, por sua vez, são inéditas, mesclas de algumas cores que ninguém antes havia ousado em compor.
Se alguém sentir-se lesado por algum escrito, favor me comunicar por e-mail que tentaremos resolver isso.
Divirta-se ou se entristeça.
Boa viagem!

terça-feira, 16 de junho de 2015

Recortes d´O tempo é um rio que corre - II Maré alta

Seguindo na minha proposta de trazer recortes desta obra da Lya Luft, vamos para a segunda parte.
* * *
II) Maré alta


"Sem que a gente entenda direito, já nos acenam os dias de ter uma vida própria, segurar o leme, decidir: o curso, a profissão, o amor (esse se decide?), a casa, os filhos, o futuro, ah!, o futuro que pertence à velha feiticeira com suas agulhas loucas. Tudo o que desejamos ser e ao mesmo tempo tememos, como vai ser, o que terei de fazer?

Os compromissos, as dúvidas, o cansaço. A alegria algumas vezes, o inesperado êxtase, a tamanha esperança.
[...] Vamos nos alegrar, vamos nos assustar, nos encolher, nos fechar no quarto, entrar na internet e seguir os esse mil chamados em que não é preciso mostrar identidade e rosto verdadeiro?"


"Se a infância é o pátio dos sustos e dos devaneios, a juventude é o horizonte provocador que dá tontura, arrepio, fascinação. Mais medo. Época dos primeiros questionamentos e daquela doce arrogância (outra face da insegurança) com que nos fingimos de onipotentes."



"Rebeldias saudáveis, rebeldias tolas, rebeldias inúteis, sinais que existimos: somos pessoas, queremos nos entender, nos expandir, queremos chegar a outros lugares:que trilhas de angústia sem explicação, a que nem nomes conseguimos dar. Mas sempre queremos mais. 

(Aqui e ali, labaredas de euforia que ninguém decifra: nem nós.)"


"[...] o adolescente finge que olhando para os lados ou tocando música bem alto não se escutarão as dúvidas e as ansiedades. Híbrido entre criança e adulto jovem, suas antenas supersensíveis se expandem e se encolhem, assustadas, muitas vezes falhando na sensação, o que parece amoroso é duro, o que parece frio é cálido, mas ele nem sempre tem como saber, e a opinião dos adultos mais machuca que ilumina."



"Estar em trânsito é a nossa essência, ninguém tem tempo para pensar no tempo."



"Ora somos reais, ora nos sentimos réus. A tribo nos acolhe, nos conforta, quebra um pouco a solidão, mas também pode nos descaracterizar, nos engolir.  gente nunca sabe direito o que fazer, então canta, então dança, então chora, então ama, então se desespera, então ri com o mesmo encantador jeito infantil de outro dia.

Ainda temos a ilusão de que não será preciso pagar todos os preços."


"[...] Esperam que sejamos felizes nessa fase, como se lhes devêssemos isso."



"Viver é estar num campo de batalha, as metralhadoras disparando o tempo todo. Atingem desconhecidos, ou alguém bem longe, mais próximo, ou no nosso lado. Um dia os atingidos seremos nós."



"Como amadurecer sem perder a graça, sem ficar embotado, sem sucumbir ao tédio da rotina com que nos enrolamos feito um cobertor que abafa as inquietações, as dores e os maravilhamentos?"



"Vamos cumprindo tarefas, conquistando algumas coisas e perdendo outras, vamos largando pedaços aqui e ali - alguns jamais se recuperam.

[...] Empurramos mais para o fundo a incerteza quanto ao que estamos fazendo, fica aí, quieta, não me estorva, eu tenho de pegar o ônibus, chegar na hora, bater o ponto, cumprir a agenda, satisfazer o patrão, o marido, a mulher, o filho, a sociedade, é preciso, é preciso, é preciso. Pois agora somos responsáveis."


"Porque tudo se vai e se transforma, eventualmente nos damos conta da importância máxima das coisas mínimas."



"Aos poucos pesa em nosso corpo (e na alma não menos) a realidade de que o rio que empurra a vida não é miragem. Manchas, rugas, cansaço, impaciência, e sempre espiando atrás das portas, o medo: estou fora dos padrões, fora do esquadro, devo impedir isso, preciso mudar? O grande engodo da nossa cultura nos convoca: a endeusada juventude tem de ser a nossa meta."



"Agora a gente quer estancar, quer se prender numa moldura impossível, se preciso queremos parar de respirar.

Pois no conceito atual, o tempo é o vampiro que suga força, beleza, potência, e nos deixará como uma casca de uva chupada, cuspida, apodrecendo no asfalto."


"Depois, aos poucos, sem perceber, deixamos de questionar: a acomodação, adversária da vida, nos protege, mas também nos anestesia. Viver agora é cumprir deveres, correr atrás de horários, tentar crescer, tentar acertar, tentar esquecer o incômodo quebra-cabeças que somos e precisaríamos a toda hora recompor.

[...] A ilusão pode ser mais confortável, mas a verdade é mais simples, só não sabemos que verdade é essa. Começamos a rejeitar como futilidade ou romantismo aquela premente indagação da adolescência: o que quero da vida? Procuro por isso ou faço o que exigem de mim?


"Se não formos demasiado fúteis nem nos avaliarmos apenas pelo bolso e pelo físico, pode haver muita energia boa na maturidade. Alguns trabalhos cumpridos, ainda horizontes pela frente, sensação de que afinal podemos repensar muita coisa."



"Descartamos o que não faz parte do nosso mundo. Porque somos perversos?
Porque somos humanos.

(Pensar dói.)"


"Dissabores fazem parte.

(Maior devia ser a celebração da vida.)"


"Não saber seria melhor do que saber? Dormir seria melhor do que viver? Não ter nada seria melhor do que tantas vezes perder? Essas águas onde pescamos dádivas e jogamos despedidas nos desafiarão até o último instante de lucidez."



"O tempo não nos aniquila: ele nos move mesmo quando nos derruba e passa por cima de nós com suas grandes patas."



"Cruéis convenções nos convocam: estar em forma, ser competente, ser produtivo, mostrar serviço, prover, pagar, e ainda ter tempo para ternura, cuidados, amor. [...] A sociedade é uma mãe terrível."



"Tempo de perder: as despedidas sôfregas, ou a partida sem o tempo de um adeus; a alegria roubada, o amor estilhaçado, o rumo perdido, o leito de morrer, o quarto de acordar sozinha, onde estão os belos momentos, onde foram parar os projetos, onde devo me situar agora, neste tempo sem tempo?

[...] Avançar porque não havia outro jeito, as pessoas que me amparavam, que me amavam não mereciam que eu desistisse. Além do mais, não reagir seria homenagear a velho bruxa Morte, e declarar que ela tinha vencido."


"A gente resiste, se pode.

Segue em frente, do jeito que pode.
A gente vence.
A gente aceita.
Ou finge.
(Máscaras muito usadas se tornam a pele do nosso rosto.)"


"Porque o tempo passa é que tudo se torna tão precioso. Porque estamos sempre nos despedindo - dessa luz, dessa paisagem, dessa rua, desse rosto, desse momento, e de nós mesmos nesse momento -, tudo assume uma extraordinária importância. Não é coisa para sentirmo constantemente, mas nas horas em que a alma se expande saímos do fútil para o singular - e vemos como somos especiais."



"Seja como for, de tropeço em tropeço, de agonia em agonia, retomamos o prumo. Pois mesmo quando de um lado a morte nos abraça, do outro a vida nos chama."



"É cruel nosso esforço em iludir o tempo, em deter a vida, em não ser quem podemos ser a cada fase, numa mentira que sacrifica muito entusiasmo, muita alegria, doçura, interesse, experiência e esperança. 

[...] Armadilhas de uma cultura da futilidade: podendo viver mais, queremos permanecer na juventude como num tanque de formol, porque uma ideologia tola nos diz que só ali estão as possibilidades todas.
E nós seguimos a manada: vamos ignorar as coisas interessantes que o mundo nos oferece em qualquer fase, vamos desperdiçar a vida agarrados a um ideal impossível, talvez grotesco. Em lugar de um semblante, uma máscara onde só a boca se move um pouco, e as pálpebras abrem e fecham.
Estaremos felizes ou apenas mais desesperados?"


"É possível desafiar os conceitos que imperam, desatar os fios que nos enredam, limpar o pó desse uniforme de prisioneiros, deixar de lado as falas decoradas, a tirania do que temos de ser ou fazer. Pronunciar a nossa própria alforria: vai ser livre, vai ser você mesmo, vai tentar ser feliz, seja lá o que isso for.

Então podemos murmurar, gritar, cantar. Podemos até dançar. Não há marcações nem roteiro, mas a inquietante possibilidade de optar[...]"

"Velhos conceitos tortos ainda nos limitam, e o coração é pequeno demais para aceitar que há possibilidades de crescer - em qualquer tempo."

"Por que não se podem celebrar a vida pessoas, sonhos, até perdas, em qualquer idade? Por que temos de nos encolher, morrendo antes da hora?"

"O afeto, o interesse, a curiosidade, estar aberto para os outros são o maior talento."

"Frequentemente se pensa que qualidade de vida significa uma espécie de embalsamento em algum ponto da mocidade. Predomina a ideia de que a velhice é uma sentença da qual se deve fugir a qualquer custo."

"Quanto aos afetos, se ao nosso redor existe apenas um deserto, possivelmente nós mesmos o criamos.
Presenças amorosas a gente procura ou nos encontram. Ainda que os afetos perdidos sejam insubstituíveis, existe espaço na alma para novos acolhimentos, desde que a gente queira. Ou possa, me diz alguém, pois algumas pessoas são, por educação e bagagem psíquica, irremediavelmente estreitas e secas."

"Não precisamos ser ricos, magros, belos, ágeis, viajar a Paris, conhecer as ilhas gregas e o mais novo restaurante chique da cidade para estar bem. Em nenhum momento da vida projetos incríveis significam incríveis alegrias. Mas a cada momento a gente pode se transfigurar."


"E o sentido da vida?
Cada um tem de inventar o seu com seus talentos e sua própria inevitável incompetência."


"A vida é uma casa que construímos com as próprias mãos, criando calos, esfolando os joelhos, respirando poeira. Levantamos alicerces, paredes, aberturas e telhado. Podem ser janelas amplas pra enxergar o mundo, ou estreitas para nos isolarmos dele. Pode haver jardins, pátio, por pequenos que sejam, com flores, com balanços, para a alegria; ou só com lajes frias, para a melancolia."

"Acossados pelo medo e pela inquietação, nunca parando para refletir e raramente para respirar, algumas pessoas parecem tombar subitamente da juventude impensada para a velhice ressentida. Foram apanhadas desprevenidas. Estavam desatentas ao milagre da existência.
Toda essa realidade, que inclui nascimento e velhice, crianças doces e caras murchas, corpos sensuais ou mentes confusas, escorre como um rio no qual flutuamos, nadamos, resistimos ou nos deixamos levar - enquanto ele, estranho e belo, permanece em seu fluir, e nos leva até onde talvez apenas comece o novo roteiro de uma nova peça de teatro."

"Melhor ter rugas de riso do que cara feito máscara de gesso."

"Se alguém na velhice é realmente só, sem ninguém, nem vizinho, nem conhecido, nem parente, nem mesmo o quitandeiro da esquina com quem falar, me perdoem: a não ser uma tragédia tenha devastado sua vida sem deixar pedra sobre pedra, possivelmente faltou cultivar interesses e afetos, em vez de esperar por eles como obrigação alheia.
A vida não nos deve nada."

"Estar quieto não é sempre depressão: pode ser, como na infância, aquela contemplação prazerosa que na agitação atual dificilmente se entende."

"Não há garantia para nada, então, assim como ser bom, honesto, decente, trabalhar direito, seguir os preceitos todos não garante que sejamos felizes, recompensados, bem-sucedidos e saudáveis; amadurecer, envelhecer com o possível de otimismo e cordialidade não garante nada.
Também em nosso refúgio da casa, da família, do trabalho, da rotina e dos afetos bons, o mal é possível.
[...] Mas uma coisa a gente pode construir de positivo, em qualquer fase da vida."

"Quando não pudermos mais realizar negócios, viajar a países distantes ou dar caminhadas, poderemos ainda ler, ouvir músicas, olhar a natureza; exercer afetos, agregar pessoas, observar a humanidade que nos cerca, eventualmente lhe dar abrigo e colo. Para isso não é necessário ser jovem, belo (significando carnes firmes e pele de seda) ou ágil, mas ainda lúcido. Todos queremos viver muito, esquecendo que viver muito é inevitavelmente envelhecer. E que envelhecer não é doença, não é deterioração: é apenas mais uma inevitável fase.
Que seja boa.
Que seja vivida, não suportada: isso, sim, depende de nós."

Nenhum comentário:

Postar um comentário